O dia em que entendi como a obra missionária realmente funciona

Anos atrás, enquanto servia na obra missionária como missionário de tempo integral na Missão Brasil Santa Maria, caminhava com meu companheiro em uma praça e fazíamos contatos com famílias que passeavam no local. Avistamos, sozinha, uma moça que aparentava ter 16 ou 17 anos e decidimos ir falar com ela.
A moça, que irei chamar de Ana, nos olhava atentamente durante a breve mensagem, e após terminarmos ela disse algo mais ou menos assim:
“Quando eu era criança, sofri abusos do meu pai quase todos os dias. Minha mãe sabia de tudo e nunca fez nada para impedí-lo. Eu e meu irmão mais novo vivíamos em um ambiente de drogas, bebidas e raramente tínhamos algo para comer a cada dia. Meu irmão precisava vender doces no semáforo para tentar trazer para casa algum alimento.”
A história, que já parecia trágica e aterrorizante, terminava com uma pergunta que deixou meu coração aos pedaços, mas que mudou o rumo de minha missão. Ana, de maneira séria e convicta, por fim perguntou:
“O que faz você pensar que eu desejo viver eternamente com eles um dia?”
A pergunta de Ana era totalmente válida, algo que, até aquele momento, eu jamais havia considerado. Por que você desejaria viver eternamente com alguém que jamais lhe demonstrou qualquer amor ou respeito? Por que desejaria viver até mesmo mais um minuto com alguém que abusou verbal e fisicamente de você, transformando todos os anos de sua vida em um pesadelo?
Ana, nessa época, não vivia mais com os pais. Apesar de ter se livrado de um lar de abusos e negligências, carregava consigo as cicatrizes e distorções causadas pelo mau uso do livre-arbítrio daqueles que deveriam tê-la amado e protegido. Ana não aceitou conhecer mais sobre o Evangelho naquela ocasião, e não sei o que aconteceu com ela após aquele dia, mas aqueles minutos de conversa me ensinaram lições que carrego até hoje.
1. A Esperança que temos precisa ser corretamente apresentada às pessoas
A primeira lição que aprendi naquele dia é que nem todas as pessoas partilham a mesma perspectiva no que diz respeito às bênçãos eternas. A ideia de família eterna é confortadora para muitos de nós, mas aterrorizante para pessoas que, como Ana, nasceram e cresceram em um lar destruído. A ideia de casamento eterno e selamento no Templo soa maravilhosa para muitos membros da Igreja, mas nem tanto para aqueles que vivenciam sentimentos de atração pelo mesmo sexo.
Servir uma missão de tempo integral e “trabalhar até o pó” é o motivo de alegria para muitos jovens Santos dos Últimos Dias, mas um sonho distante para aqueles que, por razões médicas ou debilidades físicas, não podem servir.
Cada pessoa, membro ou não da Igreja, possui diferentes histórias de vida e teve suas perspectivas e pensamentos moldados pelas experiências que vivenciou. Essas experiências frequentemente moldam suas noções de “felicidade” e as expectativas que terão em relação ao futuro.
Precisamos ter isso em mente para evitar a falsa concepção de que o Evangelho provê um “molde” único, onde todas as pessoas precisam se encaixar. Adquirir essa perspectiva é crucial para entendermos como o Evangelho se aplica à vida de cada pessoa individualmente, tornando uma mensagem geral em uma mensagem pessoal para todo aquele que a ouve.
2. A influência do tempo, nacionalidade e cultura no desenvolvimento da fé
Você talvez se orgulhe de ser um membro fiel da Igreja, de maneira que vê no mundo tantas pessoas que “ainda não encontraram a verdade”. Talvez frequentemente se sinta como o “sal da terra” ou o “trigo” que foi separado do “joio” em um ambiente de tanta descrença. A realidade é que, na prática, o mundo em que vivemos não funciona assim.
A maioria de nós, membros da Igreja de Jesus Cristo, nascemos no convênio ou encontramos a Igreja no decorrer de nossas vidas, tendo, provavelmente, em nossa família e no país onde vivemos, influências que nos inclinaram a aceitar o Cristianismo como “religião verdadeira”, de modo que rejeitamos todas as demais religiões.
Apesar de respeitarmos todos os credos, rejeitamos a maior parte de suas doutrinas e atribuímos ao Cristianismo o título de “verdadeira religião”.
O problema, entretanto, é que bilhões de pessoas simplesmente enxergam o mundo sob uma ótica diferente. Se você tivesse nascido na antiga Grécia, provavelmente teria acreditado em Zeus. Se tivesse nascido em algumas partes da antiga Mesoamérica, teria acreditado no lendário Quetzalcoatl. Se tivesse nascido na Índia, provavelmente seria hoje hindu. Se tivesse nascido em diversos países asiáticos, provavelmente seria um adepto do Islamismo, e assim vai. A mesma lógica se aplica ao Cristianismo e às muitas crenças diferentes contidas dentro dele.
Ter isso em mente nos ajuda a sermos mais tolerantes com as diferentes crenças, pacientes para entender que muitas pessoas simplesmente acreditam, como nós, possuir a verdade, e nos leva a aplicar os princípios da obra missionária de maneira mais inteligente.
Sendo o ramo religioso que mais prega e enfatiza a liberdade religiosa, precisamos erradicar de nossa perspectiva o pensamento de que somos mais especiais ou amados do que outros povos. Tal ideia não poderia estar mais equivocada.
Ao lidarmos com diferentes crenças, nossas ações, não palavras, sempre serão o maior indicativo de que a fé que vivemos realmente tem poder e provém de algo maior do que nós.
3. Paciência com aqueles que decidem deixar a Igreja
Apesar de, em escala proporcional, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias possuir uma consistente adesão de novos membros a cada ano, não é novidade que muitas outras pessoas, por uma razão ou outra, decidam abandonar o caminho que um dia escolheram seguir. O Élder Uchtdorf, alguns anos atrás, falou sobre aqueles que decidiram deixar a Igreja:
“Às vezes, presumimos que tenha sido porque eles foram ofendidos ou porque são preguiçosos ou pecadores. Na verdade não é assim tão simples. De fato, não há um único motivo que se aplique a todas as várias situações. Alguns de nossos queridos membros se debatem por anos com a dúvida: se devem ou não se afastar da Igreja.
Nesta Igreja que honra o arbítrio pessoal tão fortemente, que foi restaurada por um jovem que fez perguntas e buscou respostas, respeitamos aqueles que sinceramente buscam a verdade. Pode partir-nos o coração quando sua jornada os leva para longe da Igreja e da verdade que eles encontraram, mas honramos seu direito de adorar ao Deus Todo-Poderoso de acordo com os ditames de sua própria consciência, assim como reivindicamos esse privilégio para nós mesmos.”
Para muitas pessoas, abandonar a Igreja nem sempre significa abandonar a fé que possuem em Deus e Jesus Cristo. Em um mundo repleto de aparências, precisamos evitar a tentação de julgar as pessoas que optaram por uma vida sem o Evangelho ou a Igreja e simplesmente amá-las, apesar de suas decisões.
Como membros da Igreja, é absolutamente claro que é muito mais fácil criarmos, dentro da Igreja, um ambiente que facilite a retenção do que enfrentarmos o árduo trabalho de reacender em alguém a chama do Evangelho, que pode ter sido apagada devido a pecados, ofensas ou nossas próprias negligências.
Conclusão
Não importa qual seja o cenário, a cultura, a nacionalidade ou a experiência de vida de cada pessoa, Cristo, em Seu ministério, ensinou que as boas-novas do Evangelho se aplicam a todos. Encontrar a forma correta de aplicá-lo no nível individual não apenas tornará nossa obra missionária mais eficiente, mas também aumentará e otimizará nossos esforços para tornar o mundo um lugar melhor.
A jovem Ana, que mencionei no início, pode ter vivido um passado destruído, mas o Evangelho provê a perspectiva e a esperança de que a história pode ser reescrita. Cabe a nós entender esses princípios e torná-los parte de nossos hábitos, ações e palavras na próxima vez que encontrarmos alguém que antes julgávamos como “joio”.
Veja também: Como compartilhar o evangelho de Jesus Cristo?